Introdução ao Apocalipse de João

(Vários autores)

 

I - Procurando ver claro

Problemas do povo

O Apocalipse de João provoca muita curiosidade e interesse no povo, sobretudo nesta virada de milênio. Muitos são como aquela senhora que disse: "Entender eu não entendo. O meu entendimento é fraco, mas gosto muito porque me traz conforto e coragem na luta". De fato, não é necessário entender de música para se deleitar com uma bela sinfonia. Imagens e visões, mesmo não entendidas, podem comunicar conforto e coragem. Mas não basta coragem. Sem entendimento, ela pode desandar como um carro desgovernado.

Outros são mais exigentes. Querem entender. E alguns dizem que não gostam do Apocalipse porque dá impressão de que Deus resolve tudo e nada sobra para a gente. Aí, o perigo é de ficar paralisado.

Muitos acham que, pelo Apocalipse, este mundo convulsionado por violência, guerras, epidemias, doenças incuráveis e miséria está chegando ao fim. Outros acham que a besta-fera pode ser o avanço da ciência e da tecnologia, com suas descobertas que até ontem pareciam impossíveis, pode ser a destruição da natureza, pode ser o governo, pode ser o neoliberalismo, etc. Cada um lê o Apocalipse e, conforme seu entendimento, tira suas conclusões. - Onde procurar o entendimento certo?

As várias tendências na interpretação do Apocalipse:

O Apocalipse prediz o desenrolar da história?

O Apocalipse é visto como uma profecia da história. Os que se orientam por essa teoria interpretam as visões como descrições antecipadas da história do cristianismo. Eles encontram aí alusões à união da Igreja e do Império no tempo de Constantino, ao cisma do Oriente, à Reforma protestante, às descobertas científicas, aos artefatos bélicos, sobretudo à bomba atômica, aos terremotos, às guerras, aos problemas ecológicos. Tudo parece previsto por João. A descrição dos gafanhotos na quinta trombeta (Ap 9,7-10) já foi vista como descrição perfeita de um moderno tanque de guerra. Alguns vêem no Apocalipse uma espécie de quebra-cabeça histórico e procuram montá-lo para descobrir, por exemplo, qual será a data exata do fim do mundo.

O Apocalipse fala do fim do mundo?

Para outros, o Apocalipse não descreve o desenrolar da história, mas o fim dela. Fala só das coisas que vão acontecer no fim dos tempos, antes da segunda vinda de Jesus. Essa idéia é muito freqüente entre grupos pentecostais e/ou adventistas. Muitos se consideram os "santos dos últimos dias", vivendo no fim dos tempos, prontos para acompanhar Jesus, quando vier nas nuvens. Houve até o movimento chamado "milenarista", baseado no Apocalipse (Ap 20,1-6). Era corrente uma espécie de refrão muito repetido: "De mil passou, de dois mil não passará".

O Apocalipse quer animar as comunidades do fim do séc I d.C.?

O Apocalipse não prediz o fim da história nem fala do fim do mundo. Ele foi escrito para iluminar a situação de sofrimento e reanimar a fé, a esperança e o amor das comunidades. A partir da ressurreição de Jesus e recorrendo à memória das maravilhas operadas por Deus, guardada no Antigo Testamento, procura situar o momento difícil que o povo cristão está vivendo, trazer-lhe conforto e dar-lhe coragem para resistir e perseverar na fidelidade ao plano de Deus. O Apocalipse é um livro do seu tempo, e escrito para o seu tempo. Mas por sua perene atualidade, é válido para todos os tempos. É a grande epopéia da esperança cristã, o canto de triunfo dos cristãos perseguidos em todos os tempos.

 

O Apocalipse é uma radiografia da vida humana?

O Apocalipse não descreve o desenrolar da história, nem fala do fim do mundo, nem se prende à situação das comunidades do fim do séc. I.

Não se refere a nenhuma época determinada da história, mas sim a todas as épocas e a todos os acontecimentos, tanto de ontem, como de hoje e de amanhã. Procura ir além das aparências e revelar uma dimensão mais profunda de tudo o que acontece, para mostrar a ação de Deus e a continuidade do seu plano de salvação.

Essas quatro tendências não se excluem mutuamente. Podem até completar-se. O Apocalipse é como uma obra de arte. Uma pintura vai além das intenções do pintor. Uma poesia é mais fecunda do que a inspiração do poeta. Uma composição musical suscita mais emoções do que a emoção do compositor. O Apocalipse de João é maior do que as teorias que o interpretam. O seu sentido não se esgota em nenhuma delas. As interpretações passam. A obra permanece. A Palavra permanece, e, através dela, o Espírito Santo se comunica de formas diferentes em tempos diferentes.

Os estudiosos, hoje em dia, inclinam-se mais a privilegiar a terceira tendência: O Apocalipse de João foi escrito para animar as comunidades perseguidas da Ásia Menor no final do século I d.C.. Esta é a principal chave de leitura que será esclarecida e comprovada ao longo de nossos roteiros e estudos.

No intuito de desbravar o caminho do nosso estudo, antes de chegarmos ao CORAÇÃO (mensagem) do texto, iremos ver o seu ROSTO (forma literária e a história da composição) e seus PÉS (o chão histórico em que pisa).

II - O rosto do texto

Como nasceu e cresceu o Apocalipse:

O Apocalipse não apresenta uma unidade harmoniosa. Não tem um plano claro e dá a impressão de ter sido escrito em várias etapas. É como uma casa popular. Cresceu aos poucos, conforme as necessidades da família: no começo eram dois ou três cômodos. Com o tempo foi-se ampliando para atender, por exemplo, à chegada de filhos. Os estudiosos, como pedreiros experientes, examinaram os detalhes da construção, e concluíram o seguinte:

A parte mais antiga são os capítulos 4 a 11. Foi escrita ou durante a perseguição de Nero, em 64 d.C., ou na época da destruição de Jerusalém, em 70 d.C.. A caminhada das comunidades é vista como um novo Êxodo. A Boa Nova da libertação é apresentada como um anúncio de libertação para o povo oprimido.

No fim do governo de Domiciano (81-96 d.C.) a perseguição voltou. Era necessário refletir mais profundamente sobre a perseguição e a política do Império Romano. Na década de 90 d.C. teriam sido escritos os capítulos 12 a 22,5, concebidos como uma continuação e alargamento da sétima praga com que termina a primeira parte (Ap 11,14-19). A história é vista como revelação progressiva do julgamento de Deus, com a conseqüente condenação dos opressores do povo.

Em seguida foram acrescentados: o preâmbulo (Ap 1,4-20) que serve de introdução e as sete cartas (Ap 2,1-3,22) em que a Boa Nova é apresentada como exigência de fidelidade e compromisso.

Por último, um editor fez uma moldura do livro com a apresentação (Ap 1,1-3) e a conclusão (Ap 22,6-21).

Esta é uma das muitas teorias que existem sobre a composição do Apocalipse. Não obstante, pesquisadores concordam com o fato de que o Apocalipse é uma coletânea de diversos autores, todos sob o pseudônimo de João.

Esquema do livro

Pode-se dividir o livro em três partes: 1. Preâmbulo e cartas às sete comunidades (Ap 1,4-3,22). 2. Primeiro Cenário (Ap 4,1-11.19). 3. Segundo Cenário (Ap 12,1-22,5). A moldura é a apresentação (Ap 1,1-3) e a conclusão (Ap 22,6-21).

 

III - Os pés do texto

Época e destinatários:

A opinião mais aceita é que o livro do Apocalipse não foi escrito de uma vez. Uma parte seria da década de 60 d.C. e outra parte da década de 90 d.C.. A primeira parte pode referir-se à perseguição de Nero em 64. A segunda pode referir-se à perseguição de Domiciano, por volta de 95.

A breve anotação de que João recebeu sua vocação na ilha de Patmos (Ap 1,9) e sobretudo as sete cartas dirigidas às comunidades de Éfeso sugerem que os destinatários são as comunidades sa Ásia Menor (Ap 1,4).

As comunidades cristãs da Ásia Menor viviam uma dupla crise. A crise interna provinha do fato de que a segunda geração cristã já não tinha aquele entusiasmo original por Cristo, em comparação com a geração anterior, a primeira geração da conversão. Isso aparece claramente na carta à igreja de Éfeso: "Devo reprovar-te, contudo, por teres abandonado teu primeiro amor. Recorda-te, pois, de onde caíste, converte-te e retoma a conduta de outrora" (Ap 2, 4-5). Essa crise era agravada ainda pela invasão de doutrinas estranhas e pelas divisões internas. Mas havia também a grave crise provocada por motivos externos de ordem política. As comunidades sentiam-se impotentes diante das perseguições e diante da pretensão do imperador romano de ser adorado como "Senhor e Deus". Muitos cristãos vacilavam na fé e, diante do poder do império e da perseguição, começavam a duvidar do poder de Deus e da vitória de Jesus.

Autor e motivos do livro:

O autor se apresenta: "Eu, João, vosso irmão companheiro na tribulação" (Ap1,9). Ele não invoca nenhum título: nem de apóstolo, nem de evangelista, nem de presbítero, nem de profeta. É apenas "irmão e companheiro na tribulação". Sendo ele mesmo um perseguido, conhece o drama dos companheiros e, por isso, tem condições de animá-los.

O nome "João" aparece quatro vezes: três vezes na introdução (Ap 1,1.4.9) e uma vez na conclusão (Ap 22,8). Justino Mártir, por volta de 151 d.C., escreve o seguinte: "Um homem dos nossos, chamado João, um dos apóstolos de Cristo, em uma revelação a ele concedida, predisse que aqueles que creram no nosso Cristo habitarão em Jerusalém mil anos, depois do que terão lugar a ressurreição universal e, para resumir, eterna de todos os homens, juntamente com o juízo" (Diálogo com o Judeu Trifão). Outra tradição relatada por Euzébio (265-339) diz que se trata de um presbítero João, distinto do apóstolo.

O que parece provável é que o Apocalipse tenha a mesma autoria do Evangelho de João, por causa do estilo. Portanto, no mínimo, seria alguém que pertencia a uma escola ou comunidade joanina. Os autores apocalípticos costumavam ocultar-se sob o nome de alguma personalidade importante do passado: Enoc, Moisés, Elias, Daniel, etc. O autor do Apocalipse ocultou-se sob o nome de João, o apóstolo cuja memória continuava viva nas comunidades da Ásia Menor.

Ao que tudo indica, o autor era um coordenador de comunidades, pois, conforme transparece nas cartas, estava por dentro da situação de cada uma delas (Ap 2-3). Tem consciência de ser portador de uma mensagem de Deus às comunidades (Ap 1,9), o que lhe dá autoridade para falar. Contra os adversários, é inflexível e usa palavras duríssimas (Ap 2,9; 3,9). Escrevendo para as sete comunidades que estão na Ásia, escreve para todas as comunidades, pois o número 7 simboliza a totalidade.

 

IV - SÍMBOLOS do Apocalipse

O imperador quer ser reverenciado como "Senhor e Deus". Mas, as comunidades confessam sua lealdade absoluta somente a Cristo. As autoridades interpretam tal gesto como sinal de infidelidade política, e as comunidades são perseguidas, torturadas e discriminadas. O próprio João, que escreve o livro, também é perseguido.

Se o livro caísse, portanto, repleto de SÍMBOLOS, nas mãos dos romanos, estes não saberiam como interpretá-lo. João, vivendo na clandestinidade, obrigou-se a usar linguagem sombólico-figurativa, para que a Boa Nova chegasse com segurança às comunidades.

Quase 70% dos versículos do Apocalipse contém alusões ao Antigo Testamento. A maior parte dos símbolos provém de três livros: Êxodo, Ezequiel e Daniel. Por que? Eles refletem períodos em que o povo de Deus igualmente experimentou duras ameaças à sua sobrevivência. Apesar diso, foi amparado pelo braço vigoroso de Deus.

Ao evocar essas experiências do passado, João procura nortear a vida das comunidades no presente. Ele quer transformar o saudosismo em confiança e esperança.

As imagens e símbolos do Apocalipse dirigem-se mais ao coração que à cabeça. Por isso nem todos os detalhes precisam ser entendidos com a razão. Importante é apreciar o sentido do conjunto. Em meio às inseguranças do tempo presente, ele transmite a certeza de que nosso Deus se chama Emanuel, ou seja, Deus conosco. E age de acordo com seu nome.

Alguns dos principais símbolos e seu significado:

Três - Símbolo de Deus, invocado três vezes como Santo (4.8).

Quatro - Símbolo das coisas criadas por Deus (4.1; 7.1).

Sete - Aponta para a totalidade e inteireza de uma realidade ou de um processo (1.11; 6.1; 8.6; 15.1).

Doze - Símbolo do povo de Deus, seja da antiga aliança (12 patriarcas) ou da nova (12 apóstolos) – (21.12; 21.14).

1260 dias; 42 meses; tempos e meio tempo - É a metade de sete anos. Indica um período delimitado de tempo (12.6; 13.5; 12.14). A duplicação, multiplicação ou justaposição de um número aponta para uma intensificação do seu sentido simbólico original. Por exemplo:

        24 = 12 + 12 - Representa os eleitos das duas alianças (4.4).

144.000 = 12 X 12 X 1000 - Não indica um número matemático, e sim, a totalidade do povo de Deus (7.4; 14.1).

666 - A tríplice justaposição do número 6 pode indicar para uma pretensão de totalidade (aproxima-se três vezes do 7), significando então a maldade do totalitarismo (13.19). Outra interpretação, baseada no valor numérico das letras, chega ao nome de Nero César, primeiro imperador a perseguir as comunidades e, por isso, símbolo dos demais.

Cordeiro - É Jesus, o cordeiro pascal, cuja obra realiza a redenção e a libertação do povo de Deus (5.6; 12.11; 14.4).

Dragão - É o poder do mal, personalizado no diabo, que opera no mundo (12.3; 12.9).

Besta - Poderes terrenos que agem como instrumentos de Satanás (13.4). É símbolo do Império Romano (13.3-4) e dos que promovem culto ao imperador (13.11-12).

Águia - Mensageira de Deus para anunciar o juízo (8.13) ou proteção divina (12.14).

Babilônia - Símbolo dos que oprimem o povo de Deus. Representa a cidade de Roma (16.19; 18.2; 18.10), também descrita como uma meretriz (17.5).

Mulher Perseguida - Símbolo do povo de Deus perseguido, do qual nasce o Messias Jesus (12).

Jezabel, nicolaítas, Balaão - Símbolo dos que pretendem seduzir as comunidades a acomodar-se à prática da idolatria (2.6; 2.14; 2.20).

Armagedom - Significa "Monte Meguido", local de muitas batalhas em Israel. Simboliza a batalha final entre as forças divinas e diabólicas (16.6), assim como Gogue e Magogue (20.8).

Nova Jerusalém - Símbolo da nova realidade que Deus vai criar no final dos tempos (21).